Manifestações já deixam mais de 300 presos, e oposição apresenta moção para tentar derrubar Gabinete de governo

A França amanheceu sob protestos um dia após o governo do presidente Emmanuel Macron lançar mão de um recurso constitucional para driblar a Assembleia Nacional e aprovar sua controversa reforma da Previdência, que posterga a idade mínima de aposentadoria dos 62 para os 64 anos. Carros incendiados, rodovias bloqueadas e refinarias fechadas marcaram os protestos que já deixam ao menos 310 presos pelo país.

O rechaço começou ainda na tarde de quinta, após a primeira-ministra, Élisabeth Borne, anunciar que o Palácio do Eliseu recorreria ao artigo 49.3 da Constituição para atuar por decreto e implementar sua iniciativa, que adia a idade mínima de aposentadoria dos 62 para os 64 anos. 

Milhares de manifestantes foram espontaneamente para as ruas de Paris, onde a polícia respondeu com gás lacrimogêneo e canhões d'água para tentar dispersá-los da Praça da Concórdia, perto do Legislativo.

De acordo com o ministro do Interior, Gérald Darmanin, cerca de 10 mil pessoas foram protestar, e só na capital 258 pessoas foram presas. Outras 52 cidades também registraram manifestações, entre elas Rennes e Nantes, no Oeste, e Lyon, no Leste, reunindo um total de 52 mil pessoas. Em Marselha, lojas foram saqueadas. Segundo as forças de segurança, ao menos 54 policiais ficaram feridos.

Na manhã de sexta, cerca de 200 manifestantes bloquearam o rodoanel de Paris por cerca de uma hora, causando engarrafamentos. Na véspera, alguns críticos da medida de Macron aproveitaram o excesso de lixo nas ruas, resultado da greve do serviço municipal de limpeza contra a reforma, para fazer fogueiras e barricadas — cenas que remetem aos protestos dos coletes amarelos de 2018 e contrastam com o caráter pacífico das manifestações das últimas semanas.

Os sindicatos franceses fazem protestos contra o governo desde que a reforma foi apresentada janeiro, com greves prolongadas em setores como o serviço de limpeza pública. Há 10 dias, entre 1,28 milhão e 3,5 milhões de pessoas tomaram as ruas da França, na maior manifestação contra uma reforma social no país das últimas três décadas.

Os protestos perderam força à medida que os franceses admitem que a reforma acabaria sendo aprovada. Os sindicatos, contudo, já convocaram novos protestos para o fim de semana e uma paralisação geral para o dia 23 de março, a nona desde que o projeto foi apresentado. Sindicatos de professores ameaçam paralisações que podem atrapalhar o Baccalaureate, o vestibular francês.

Segundo uma pesquisa feita pelo instituto Toluna Harris, oito em cada dez franceses discordaram da decisão do governo de pular o voto no Parlamento. Hoje, cerca de 65% deles também desejam que as manifestações prossigam.

— Algo fundamental aconteceu e é que imediatamente, mobilizações espontâneas aconteceram por todo o país — disse Jean-Luc Melénchon, líder do partido de esquerda radical França Insubmissa. — Não preciso dizer que eu os encorajo.

Em uma entrevista ao canal de televisão RTL, Darmanin denunciou que os manifestantes haviam queimado bonecos que representavam Macron e Borne, além de atacar prefeituras e representações do governo em capitais regionais. Segundo ele, "a oposição é legítima, as manifestações são legítimas, mas a desordem e semear a desordem, não".

'Arma nuclear legislativa'

Apelidado de "arma nuclear legislativa", o 49.3 provoca a suspensão imediata da discussão de um projeto de lei no Legislativo. Após sua ativação, os partidos políticos têm 24 horas para depositar uma moção de censura contra o governo. A medida precisa do aval de 10% dos deputados para ir a plenário, ou 58 assinaturas.

O Reunião Nacional, sigla de extrema direita de Marine Le Pen, apresentou uma moção e a esquerda radical também sinalizou que o faria. O grupo centrista independente Liot, que recebeu o endosso da Nova União Popular Ecológica e Social (Nupes), aliança de esquerda que é a segunda maior força política do país, também apresentou uma medida.

Pela legislação francesa, o voto só pode ocorrer ao menos dois dias após a tramitação do recurso parlamentar, e é esperado para o início da semana que vem. A tendência é que segunda-feira seja o dia decisivo.

Caso seja aprovada por maioria absoluta na Assembleia, que tem 287 assentos, o voto de desconfiança derrubará não só a reforma, mas também a premier e todo o Gabinete Ministerial. Reeleito no ano passado sob a promessa de mudanças, o presidente Macron seguiria no cargo, no entanto. Se a moção for rejeitada, a reforma será implementada.

Cenário conturbado

É raríssimo que moções de censura do Legislativo tenham êxito na França: nenhum dos 16 primeiros-ministros que a utilizaram desde que a Constituição foi promulgada em 1958 foi derrotado. A ativação mais recente foi a 100ª nos últimos 55 anos e a 12ª do governo Macron — onze foram usadas desde outubro do ano passado, sinalizando a dimensão das dificuldades que o Eliseu enfrenta após a eleição legislativa do ano passado, em que o governo perdeu a maioria no Parlamento.

Mesmo sem a maioria absoluta, contudo, há pouca chance da medida ser bem-sucedida. Os olhares estavam voltados para alguns deputados governistas que poderiam optar pela abstenção e para os parlamentares do partido aliado Os Republicanos (LR), de direita. As lideranças da legenda, até agora, rechaçam tal aliança.

Alguns parlamentares do LR sinalizaram que poderiam descumprir as ordens do partido, mas a moção de desconfiança demandaria que todos os parlamentares de oposição — da extrema esquerda à extrema direita — e metade dos 61 deputados da sigla aliada do governo fossem na contramão de Macron. A aliança de forças parece improvável neste momento.

O momento, ainda assim, é de imensa fragilidade para Macron, que luta conta críticas de ser desconectado da realidade dos franceses. Ele já havia tentado aprovar uma reforma da Previdência ainda mais ambiciosa em 2019 e 2020, mas não conseguiu. O texto atual, atenuado, antecipa para 2027 a exigência de contribuição por 43 anos — e não 42, como atualmente — para que o trabalhador tenha direito à pensão integral. A antecipação na idade da aposentadoria valerá a partir de 2030.

O presidente tinha convicção na aprovação do projeto e já havia ameaçado usar outro recurso constitucional que permite a dissolução da Assembleia Nacional em caso de derrota. A convocação de novas eleições legislativas, contudo, seria uma manobra arriscada em um momento no qual a extrema direita de Le Pen aparece bem nas pesquisas.


Fonte: O GLOBO