Relatórios de inteligência da Ucrânia e de aliados Ocidentais mostram que paramilitares ligados ao Kremlin submeteram recrutas com pouco treinamento a ofensivas quase suicidas em Bakhmut e região

Uma cena se repete há meses no Oeste da Ucrânia, onde tropas russas concentram seus esforços na tentativa de tomar a cidade industrial de Bakhmut: mesmo sob pesado fogo inimigo e sem apoio de blindados ou artilharia, soldados russos avançam contra as linhas inimigas, em uma atitude quase suicida. A dinâmica, descrita por inúmeros soldados e em relatórios da Inteligência ucraniana repercutidos na imprensa internacional, revela uma cruel estratégia utilizada pelo Grupo Wagner, tropa mercenária fundada por Yevgeny Prigojin — um aliado de primeira ordem de Vladimir Putin — na tentativa de alcançar uma vitória militar a qualquer custo.

De acordo com militares que combatem nas unidades mobilizadas nos arredores de Bakhmut, a abordagem russa é tão simples quanto custosa. Pequenos grupos de recrutas, divididos por funções específicas — algumas das quais nem sempre garantem o direito a portar uma arma —, revezam-se em ataques contínuos contra a linha de frente ucraniana, indiferentes ao número de baixas.

— No primeiro mês, todos os dias, cinco a seis vezes por dia, grupos de 10 a 15 pessoas avançavam contra a nossa posição de infantaria através da linha das árvores — disse um militar da 3ª Brigada de Assalto de infantaria ucraniana, que passou os últimos três meses em Bakhmut, em entrevista recente ao The New York Times. — Psicologicamente é difícil, é algo não visto. Nossos caras estão se perguntando se eles [os russos] estão drogados. Caso contrário, como eles podem ir para a morte certa, pisando nos cadáveres em decomposição de seus colegas? — acrescentou.

Direito ao ponto: quais são as táticas do Grupo Wagner?

Grupo Wagner utiliza soldados com pouco treinamento e mal equipados para atacar posições no Oeste da Ucrânia;

utilizando sua proximidade com Putin, Prigojin obteve autorização para recrutar homens na prisão e para atuar em coordenação com as forças russas – estima-se que metade morreu ou foi ferida;
presos alistados receberam promessa de terem penas extintas após seis meses de serviço militar, caso sobrevivam;

também foram ameaçados de execução em caso de deserção ou recuo no front, onde estão divididos conforme três funções: 'escavadores', 'carregadores' e 'atiradores';

em confronto com as autoridades militares de Moscou, grupo avalia diminuir operação na Ucrânia após repasse de armamentos ser reduzido e perder direito de recrutamento em presídios.

'Moedor de carne'

Estimativas apontam que, apenas na ofensiva contra Bakhmut, cerca de 20 mil homens do Grupo Wagner morreram ou foram feridos em combate. No entanto, um recorte dentro das tropas do grupo mostra que as baixas não são aleatórias.

Ainda no ano passado, utilizando-se de suas relações com Putin e do interesse do Kremlin de não empregar reservistas em sua chamada "operação militar especial" na Ucrânia, Progojin conseguiu uma autorização para recrutar condenados em cadeias russas para combater no país vizinho em troca da extinção de suas penas criminais.

Em um vídeo que circulou nas redes sociais no ano passado, Prigojin aparece em um presídio russo fazendo a proposta aos detentos. Em linhas gerais, as condições eram de servir por seis meses na Ucrânia em troca de liberdade, caso sobrevivessem. Nas imagens, ele advertia que quem aceitasse a proposta não teria oportunidade de desistir, advertindo que desertores seriam executados com um tiro.

A missão de sobreviver aos seis meses, no entanto, tornou-se ainda mais difícil quando os recrutas foram escolhidos para protagonizar a estratégia do grupo mercenário. Segundo uma estimativa da Inteligência britânica, aproximadamente metade dos 40 mil condenados que se alistaram ao Wagner foram mortos ou feridos nos combates em Bakhmut e na cidade de Soledar, capturada no começo deste ano.

De acordo com os EUA, os cerca de 10 mil profissionais contratados pelo Wagner e enviados para a Ucrânia — homens com treinamento militar e contratos anteriores, oferecidos fora do contexto prisional — têm sido utilizados de maneira mais cautelosa, não sendo submetidos ao que observadores internacionais têm chamado de "moedor de carne".

Funções específicas

Militares ucranianos ouvidos pelo The New York Times indicaram que os mercenários utilizados no front pelo Grupo Wagner se dividem em funções específicas, que foram mapeadas pelo comando militar de Kiev. Por meio do relato dos militares que confrontam as tropas russas há meses e de vídeos obtidos por unidades de reconhecimento por drone, os ucranianos acreditam que existam pelo menos três tipos de trabalho desempenhados pelos recrutas no front.

Entre eles, o grupo mais exposto durante as hordas de ataque são os chamados "escavadores". Muitas vezes enviados contra as linhas inimigas sem nenhuma arma de fogo, eles acompanham os avanços das tropas com pás, cavando trincheiras e bunkers utilizados como posições pelo restante do grupo.


Outra categoria identificada pelos militares é a dos "carregadores", responsáveis principalmente por transportar a munição durante os deslocamentos. Por fim, há também o grupo dos "atiradores", estes sim armados — normalmente com armamentos leves — que são os responsáveis por tentar tomar as posições inimigas.

'Rigor stalinista'

Mesmo com algumas deserções, que ajudaram o Ocidente a conhecer as estratégias utilizadas pelos paramilitares russos no front, os ataques em onda continuam a acontecer com certo sucesso no sentido de avançar sobre o território inimigo.

O motivo de nenhum "motim" entre os novos recrutas, no entanto, parece ser resultado de um rigor aos modos de Josef Stálin. Para operacionalizar a resistência patriótica em Stalingrado, durante a Segunda Guerra Mundial, uma das medidas baixadas pelo marechal foi a ordem 227, que impôs um padrão de disciplina extremo, criando tropas na retaguarda para executar qualquer um que recuasse sem uma ordem do Alto-Comando para fazê-lo.

De acordo com o comando militar de Kiev, algo parecido acontece nas imediações de Bakhmut. Por meio de interceptações telefônicas e de um documento escrito encontrado no bolso de um soldado morto, os militares concluíram que os recrutas-detentos são advertidos que a pena para a deserção ou o recuo é a morte. E a suspeita é de que existam unidades antirrecuo, posicionadas na retaguarda, para aplicar a punição.

Em um vídeo captado por um drone ucraniano, um soldado russo cambaleia sozinho após uma rajada de tiros levantar a terra ao seu redor. Ele olha para trás por um segundo, pronto para fugir, mas logo retoma o sentido e continua a se mover em direção ao fogo inimigo, mesmo sem ter uma arma em punho. De acordo com a análise de um militar da Ucrânia ouvido pelo The New York Times, o soldado não teria voltado para trás, provavelmente, porque os soldados russos foram informados de que seriam baleados ou presos se recuassem.

Fonte seca?

Quando pôs em prática a estratégia utilizada atualmente em Bakhmut, Prigojin e o comando do Grupo Wagner viviam uma situação diferente com o governo russo. Autorizado a recrutar indiscriminadamente condenados nas prisões — incluindo detentos que cumpriam penas por crimes violentos, alguns deles que já retornaram para a Rússia em liberdade —, as perdas não eram consideradas uma preocupação iminente, uma vez que os homens sem treinamento não eram algo considerado um recurso valioso.

Porém, após mais de um ano de guerra, as relações de Prigojin com o Kremlin se deterioraram, com frequentes embates públicos entre ele e o comando militar das Forças Armadas russas. Entre os alvos das críticas estão Valery Gerasimov, o principal general da Rússia e promovido a supervisor da guerra por Putin no início do ano, e o ministro da Defesa, Sergei Shoigu.

As queixas sobre atraso nas entregas de armamentos e munição e de falta de apoio das tropas regulares no campo de batalha minaram a relação com a cúpula do governo, o que, na opinião de certos analistas, provocou um desequilíbrio político em Moscou.

— Prigojin se tornou independente demais, o que violou o equilíbrio entre os clãs de elite — disse Andrei Kolesnikov, membro sênior do Carnegie Endowment for International Peace, em entrevista à Bloomberg.

Sem as mesmas regalias e com dificuldades no front, Prigojin dá sinal de que pode mudar o foco das operações do grupo para a África, onde seus paramilitares também atuam desde a década passada, apesar das condenações do Ocidente. Resta saber o quanto a situação dentro do Kremlin vai pesar, e se será suficiente para afastar o grupo da Ucrânia.


Fonte: O GLOBO