Liderança dos EUA, que perceberam no envio de armas a Kiev uma chance de cumprir o objetivo estratégico de enfraquecer um rival, foi crucial para evitar vitória da Rússia

O escopo do apoio militar do Ocidente à Ucrânia — em relação ao tipo de armamento e de sua constância — parecia improvável no início da invasão da Rússia, há quase um ano, quando muitos consideravam favas contadas uma rápida vitória das tropas de Vladimir Putin. 

Para evitar isso, foi crucial a liderança dos EUA, que perceberam no envio de armas à ex-república soviética uma chance de cumprir o objetivo estratégico de enfraquecer um rival. No caminho, acabou por mudar políticas de defesa vigentes havia décadas em países europeus, sobretudo na Alemanha.

Washington já armava regularmente o Exército ucraniano desde os protestos do Euromaidan em 2014, com a derrubada de um governo pró-Kremlin e a subsequente anexação militar por Moscou da Península da Crimeia. 

Os valores então cresceram regularmente, alcançando US$ 400 milhões em 2021 e totalizando, ao longo de oito anos até as vésperas da guerra, US$ 2,7 bilhões — mais de 90% da ajuda militar estrangeira a Kiev.

O montante seria pouco se comparado aos valores pós-invasão. Os EUA já forneceram mais de US$ 30 bilhões em 12 meses, enquanto seus aliados doaram US$ 13 bilhões. Foram entregues de coletes e uniformes a baterias antiaéreas, de blindados e mísseis portáteis antitanque a alimentos. Em janeiro, anunciaram-se tanques, principalmente da Europa, e os pedidos não param: o governo ucraniano agora demanda caças.

Em dezembro de 2021, um mês após a Rússia começar a concentrar forças na fronteira, a Lituânia deu a largada, enviando coletes. As doações intensificaram-se antes da invasão, incluindo fuzis, mísseis portáteis antitanques e antiaéreos e munição de armas portáteis e de artilharia, com Reino Unido, Holanda e Canadá entre os doadores iniciais. 

Mas as maiores remessas já eram dos EUA, que, em 20 de janeiro de 2022, anunciaram a entrega de estoques do Departamento de Defesa no valor equivalente a US$ 200 milhões. Também autorizaram que aliados regionais transferissem à Ucrânia equipamentos de fabricação americana.

Reversão histórica alemã

Por motivos históricos, a Alemanha, o quarto maior produtor e exportador de armas do mundo, destoava. Além de depender fortemente da energia russa, o país tinha há décadas uma política de não enviar armas para zonas de conflito. 

Uma geração mais nova, porém, percebia nos meios bélicos uma ferramenta às vezes útil para a paz. Apesar de continuar ainda hoje, essa tensão enfraqueceu após a redução da dependência energética.

Mas, em janeiro de 2022, o Ministério da Defesa disse que a Alemanha queria "desintensificar", anunciando, em vez de armas, módicos 5,3 milhões de euros para um hospital de campanha. A reversão histórica começou no terceiro dia da guerra. 

Berlim anunciou o fornecimento de mil armas antitanque e 500 armas antiaéreas portáteis Stinger e também autorizou a Holanda a enviar 400 lança-granadas e a Estônia a mandar nove obuses.

"A invasão russa da Ucrânia marca um ponto de virada", disse o chanceler alemão, Olaf Scholz, em um comunicado. "[Ela] ameaça toda nossa ordem pós-guerra. Assim, é nosso dever fazer o possível para apoiar a Ucrânia na defesa contra o Exército invasor de Vladimir Putin."

A União Europeia seguiu o exemplo no dia seguinte, com anúncios individuais da maioria dos membros do bloco. Em abril, formou-se um grupo de contato com 50 países para coordenar o apoio. 

A tendência foi sempre de cada vez mais armas, cada vez mais pesadas, como o sistema múltiplo de foguetes dos EUA Himars (doado pela primeira vez em junho), os mísseis antiaéreos americanos Patriots anunciados em dezembro, e desde então prometidos também por Alemanha e Holanda, e os recentes tanques Leopard II, Abrams e Challengers.

Cada um desses armamentos implica em desafios logísticos, mas as tropas ucranianas vêm aprendendo rápido. As armas ajudaram Kiev também no campo de batalha da informação: soldados gravam vídeos de propaganda das armas sendo usados, algo que atrai simpatia ocidental e abre caminho para novos itens.

Estratégia da Otan

Para o atual cenário, foi crucial a liderança do presidente Volodymyr Zelensky, um ex-ator que soube encarnar o papel de comandante em chefe em período de guerra. 

Sempre de uniforme militar, ele fez pedidos de socorro durante discursos em toda parte, da ONU a mais de 20 Parlamentos mundiais, do Grammy aos Festivais de Cinema de Cannes e Berlim. Mais de 70% dos americanos confiam nele, segundo pesquisas.

A estratégia da Otan, cuja imagem revitalizou-se desde a guerra, consiste em mandar à Ucrânia tudo aquilo que Putin tem chance de aceitar sem retaliar com armas nucleares ou ataques à própria aliança militar do Ocidente. 

Alguns analistas mais agressivos dizem que, para encerrar o conflito, a ajuda deveria ser ainda maior, e Kiev deveria receber todos os itens que os próprios países da Otan usariam para se defender, exceto armas atômicas.

Mas os limites exatos são incertos, e várias vezes Putin sugeriu que poderia recorrer a armamento nuclear. A fronteira do que pode ou não ser entregue é constantemente testada, negociada e repensada, com informações de inteligência não disponíveis ao público.

Se parecia improvável, a ajuda militar ocidental foi crucial para frustrar os planos de Moscou de dominar seu país vizinho. 

Na avaliação de Mark Cancian, analista do instituto conservador Center for Strategic and International Studies (CSIS), de Washington, “sem o apoio dos EUA e, depois, o apoio europeu e mundial mais amplo, os ucranianos teriam desabado”.

— O apoio é absolutamente vital, assim como continuar com ele — afirmou à AFP.

Efeito colateral do apoio

Por outro lado, o fortalecimento ucraniano também significou o prolongamento indefinido da guerra, com a destruição de grande parte do território do país, a migração em massa e a perda de centenas de milhares de vidas. 

Nos primeiros dias da invasão, Zelensky mostrava-se disposto a negociar e dizia que seu país abriria mão da intenção de fazer parte da Otan. Agora, fala em retomar a Crimeia ocupada, o que com certeza é um limite inaceitável em Moscou, não só para Putin, mas para qualquer um que possa vir a substituí-lo.

Segundo Stephen Walt, professor de Relações Internacionais de Harvard, "quanto mais ajuda, armamento, inteligência e apoio diplomático os EUA e a Otan fornecem à Ucrânia, mais suas reputações ficam ligadas ao resultado. 

Essa é uma das razões pelas quais o presidente Volodymyr Zelensky e os ucranianos continuam exigindo formas de apoio cada vez mais sofisticadas; é do interesse deles que o Ocidente esteja o mais próximo possível de seu destino".

Em meio ao cenário de destruição, o que alguns observadores da geopolítica se perguntam é qual é a estratégia por trás dos envios contínuos de armas, sem haver no horizonte perspectiva de paz.

"O que me preocupa na entrega de novas armas é a abordagem fragmentada sem uma estratégia identificada. Sim, queremos a vitória da Ucrânia, mas o que isso significa? Que custo estamos dispostos a arcar? Qual é o planejamento de contingência?", escreveu o embaixador aposentado francês Gérard Araud quando houve o anúncio do envio de tanques após demoradas negociações. 

"Aposto que teremos o mesmo debate cansativo sobre a entrega de caças para a Ucrânia em breve. Estamos envolvidos passo a passo em uma escalada descontrolada sem qualquer estratégia identificável", acrescentou.


Fonte: O GLOBO