Reescrever o papel das Forças Armadas na Carta é considerado assunto delicado

Usado por bolsonaristas durante dois anos para pregar uma intervenção militar, o artigo 142 da Constituição voltou a ser debatido, desta vez por iniciativa do PT. 

Na Câmara dos Deputados, os governistas tentam alterar trecho da Carta para evitar interpretações equivocadas ou ambições golpistas. A proposta, porém, é delicada. Isso porque, na prática, o trabalho envolveria reescrever o papel das Forças Armadas. Até mesmo entre os aliados, há receio em abrir discussão sobre o tema.

Petistas admitem que não há assinaturas necessárias sequer para protocolar a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que trata do assunto. O artigo em questão trata dos direitos e deveres das Forças. Assinala que os militares, “sob a autoridade suprema do Presidente da República”, devem garantir a “defesa da Pátria" e "dos poderes constitucionais". 

Em nenhum momento, contudo, trata as Forças como um Poder Moderador — discurso empregado à exaustão em manifestações antidemocráticas.

De autoria do deputado Carlos Zarattini (PT-SP), a PEC tem o objetivo de não deixar dúvidas sobre as prerrogativas dos militares. Líderes das principais bancadas da Casa Legislativa indicam que o controverso assunto deve fazer com que o PT abra negociações diretas com os seus parlamentares. 

Nem mesmo líderes do PSD e do MDB, partidos que possuem três ministérios cada um, dizem que o assunto está fechado com as suas respectivas bancadas.

Zarattini explica que a intenção da alteração no texto original da Constituição é a de "acabar com a sombra eterna de intervenção militar, não dar sobra a diferentes interpretações do artigo e delimitar o uso das Forças em operações em favelas, como as vistas durante operações em Garantia da Lei e da Ordem (GLO)".

— Queremos mudar isto para que não existam interpretações errôneas. As Forças Armadas não são um poder acima de outros. Este poder de tutela é completamente equivocado e é frequentemente usado em manifestações golpistas, que pedem, por exemplo, para que haja intervenção sobre o Supremo Tribunal Federal (STF). 

Isto precisa acabar. E, com a mudança do texto, também poderemos impedir o uso das Forças Armadas em operações em regiões conflagradas. Desde 1992, foram mais 100 neste país — afirma Zarattini.

Em relação às assinaturas e apoios necessários, o petista confessa ainda não saber, ao certo, se conseguirá obter êxito:

— Esperamos contar com as 80 assinaturas da federação liderada pelo PT (que conta com PCdoB e PV). Dialogaremos com o PSOL, PSD e MDB, por exemplo. Precisamos, antes de qualquer coisa, de 171 assinaturas para a tramitação da PEC. 

Depois, a CCJ debaterá a sua admissibilidade. Esta mudança é coerente com as falas recentes do presidente Lula, que já deixou claro acreditar que o papel das Forças Armadas não pode ser político — completou.

Em junho de 2020, o ministro do STF Luiz Fux chegou a se manifestar, em decisão liminar, sobre o assunto. Ao ser provocado por ação do PDT, Fux afirmou que as Forças Armadas "não são poder moderador", e destacou que Exército, Marinha e Aeronáutica "não podem interferir nos Poderes". 

Na segunda-feira, o PSOL acionou o Supremo para tratar do mesmo assunto. A legenda quer uma decisão definitiva sobre interpretações golpistas do artigo 142.

Na Câmara, o assunto não é unânime nem mesmo entre os partidos que possuem cargos no primeiro escalão do governo. Líder do PSD na Câmara, Antônio Brito se esquiva ao ser questionado sobre o posicionamento que deve ser adotado pela bancada do partido.

— É complicado (o assunto), a matéria ainda não foi pautada. Nosso acordo é contribuir com o governo, mas este assunto precisaria ser debatido internamente, com muito cuidado. Ainda não temos um posicionamento e possuímos outras prioridades — afirmou.

Isnaldo Bulhões, líder do MDB, vai na mesma linha. Ele reitera o compromisso de votar junto com o governo, mas diz que não pode garantir que toda a bancada opinará de forma unânime.

— Ninguém falou sobre esta PEC comigo. Temos, sim, o compromisso de votar com o governo federal, mas eventualmente teremos as nossas dificuldades, nas quais não poderei garantir 100% de aderência. Como convencer nossos quadros que deram uma guinada à direita nos últimos anos sobre determinados temas? Mas, este é um debate que ainda não se iniciou — disse.

O assunto, como era de se esperar, gera inconformidade entre os bolsonaristas. Carlos Jordy (PL-RJ) promete fazer oposição ao tema e critica a alteração proposta pelo petista.

— Faremos resistência até o final. Para que mudar um artigo que consta desde a Constituição Federal Originária? Eles (parlamentares da esquerda) dizem que o artigo não dá um poder especial às Forças Armadas, não é mesmo? Então, pra que mudá-lo, se eles têm tanta convicção assim de que o tema é claro? Isto é um absurdo.

Lenio Streck, professor de direito constitucional, afirma que o simples debate sobre a interpretação do artigo 142 configura um "retrocesso".

— Essa construção que interpreta as Forças Armadas como poder moderador é criminosa. O artigo 142 sempre foi claro. Se precisarmos modificá-lo, precisaremos modificar todos os outros e admitiremos um fracasso. Seria uma terraplanismo jurídico. Não há necessidade de uma PEC existir para deixar claro algo que não deveria ser debate — opina.

Polêmica antiga

Transformado por bolsonaristas em pretexto para uma possível intervenção militar, o artigo 142 da Constituição não foi redigido para permitir qualquer ação das Forças Armadas contra Legislativo e Judiciário. 

O trecho da Carta de 1988, segundo deputados constituintes já ouvidos pelo GLOBO, nunca teve esse alcance. Levantamento feito em 2020 por meio de notas taquigráficas da Constituinte e no noticiário de 1987, quando o artigo foi elaborado, além de relatos dos próprios parlamentares, revelou que houve atritos com as Forças Armadas sobre qual seria seu papel. Mas nunca a intenção de transformar os militares em “poder moderador”.

À época líder do PMDB no Senado, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso ajudou a formular o texto e enfrentou a insatisfação do então general do Exército, Leônidas Pires Gonçalves, mas por questões pontuais. Segundo Fernando Henrique, ele e o senador José Richa (PMDB-PR) participaram pessoalmente das negociações com os militares.

— O que o senador Richa e eu introduzimos de novo no texto foi que qualquer dos três Poderes poderia convocar as Forças Armadas para assegurar a lei e a ordem. Era usual (como é) convocá-las, em certas regiões do país para garantir, por exemplo, que as eleições ocorram pacificamente. Nada se pensava em termos de tutela —disse o ex-presidente ao GLOBO.


Fonte: O GLOBO