Lula se bolsonarizou? A insólita pergunta e suas variações vêm sendo ouvidas nos gabinetes do Congresso Nacional e nas salas de reunião da Faria Lima nos últimos dias. Antes que comece a grita da falsa simetria: é claro que não estão falando de golpismo nem de nenhuma aberração antidemocrática.

Bolsonarizar, na linguagem usada por esse pessoal, é uma alusão à estratégia do ex-presidente da República de, não podendo fazer o que quer em razão de alguma barreira institucional, partir para o ataque contra a autoridade que atravessa seu caminho.

Foi o que Jair Bolsonaro fez várias vezes, como quando atirou contra três presidentes da Petrobras, que não baixavam o preço dos combustíveis como ele queria, ou contra o presidente da Anvisa, que não aprovava o uso da cloroquina para o tratamento da Covid-19.

Nos dois casos, Bolsonaro estava amarrado. Não podia demitir o presidente da Anvisa porque ele tinha mandato e não estava sujeito a suas ordens. 

Até podia demitir o presidente da petroleira, mas não tinha em princípio nenhuma intenção de fazer isso, porque sabia quanto custaria para o governo e para a própria economia.

Ao final, conseguiu tirar da Petrobras seus desafetos, mas nem por isso pôde mexer na política de preços dos combustíveis.

Lula segue o mesmo método ao bater no presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto — “esse cidadão” — por causa dos juros altos, deixando vazar que pode aproveitar alguma brecha na lei para exonerá-lo. 

Ou ainda ao declarar que a privatização da Eletrobras foi “bandidagem” e afirmar que seu governo tentará revê-la.

O presidente não vai nem exonerar Campos Neto nem reverter a privatização da Eletrobras. E não o fará não só porque enfrentaria uma série de obstáculos legais, mas também porque o custo seria tão alto que arriscaria inviabilizar o próprio governo.

A reação dos atores políticos e econômicos aos tumultos provocados por Lula e Bolsonaro é igualmente parecida: alertam sobre os riscos envolvidos, mas apostam que o presidente da República só quer agitar seus radicais, enquanto elege um culpado por eventuais fracassos. 

No Congresso, não se encontra nenhum parlamentar sério que realmente acredite que vá adiante qualquer plano de acabar com a autonomia do BC.

Na Faria Lima, segundo um informe recente da XP, uma das maiores do ramo, “o mercado está cada vez mais dissociando o que Lula fala das ações de governo”. 

Traduzindo: por enquanto, o mercado de que Lula tanto reclama não está dando muita bola para o que ele diz. Mas segue o alerta da XP: se houver algum passo do governo para transformar as falas de Lula em medidas concretas, haverá problemas.

Por isso, nos últimos dias, todo mundo que tinha acesso a Fernando Haddad na Fazenda, a Simone Tebet no Planejamento, a Alexandre Padilha nas Relações Institucionais ou a Geraldo Alckmin na Vice-Presidência foi sondar o que há sob a espuma dos arroubos lulistas. O que ouviram provocou um misto de alívio e preocupação.

Por um lado, os aliados garantem que não há risco de Lula avançar contra a autonomia do Banco Central ou a privatização da Eletrobras. O problema é quando tentam explicar por que Lula, com toda sua experiência, insiste em comprar uma briga com tamanho potencial destrutivo.

Há quem diga que se trata de um movimento calculado para fazer Campos Neto se “tornar mais colaborativo” e que “logo ele vai parar com isso”. Mas há também quem observe que Lula não conta mais com os conselheiros experientes que, em mandatos anteriores, diziam o que ele não queria ouvir.

Aos 77 anos e se sentindo consagrado pela terceira vitória para a Presidência, ele estaria mais free style, com menos filtro e menos paciência de se conter para agradar a quem quer que seja.

É difícil prever até que ponto a responsabilidade prevalecerá sobre a estridência, mas, a esta altura, já parece claro aos mais enfronhados na lógica de Lula e do PT que o barulho veio para ficar. A inflexão do presidente à esquerda e o clamor contra o mercado, os juros e a responsabilidade fiscal não desaparecerão.

Operadores da política e da economia agora torcem para que se contenham os arroubos de Lula numa espécie de cercadinho retórico, enquanto figuras como Haddad e Arthur Lira “tocam a agenda do país” no ministério e no Congresso. 

Se vai funcionar, ainda não se sabe. Afinal, Lula 3 definitivamente não é Bolsonaro. Mas também já não é mais o mesmo Lula que conhecemos no passado.


Fonte: O GLOBO