Desafio de visita a Washington é que o presidente brasileiro de algum modo aparente ter afinidade com Putin, possivelmente motivando reação enfática de Biden

A visita-relâmpago do presidente Luiz Inácio Lula da Silva a Washington nesta sexta-feira dificilmente terá como resultado o anúncio de algum acordo concreto importante. Seu principal propósito é funcionar como um contato inicial que estabeleça um clima auspicioso entre os presidentes, tendo na mira a relação em médio e longo prazo. 

A partir desse primeiro encontro, espera-se que a parceria depois floresça em áreas como o meio ambiente, e que a navegação por potenciais pontos de atrito, como questões comerciais, seja mais fácil.

Diferenças nas concepções sobre a guerra na Ucrânia são a principal ameaça capaz de causar um imprevisto e fazer a cooperação ambicionada azedar. O presidente americano, Joe Biden, investiu pesado no auxílio à Ucrânia contra a invasão de Vladimir Putin e tem no discurso de oposição à tirania um item central de sua provável campanha à reeleição no ano que vem.

Lula, por sua vez, mantém uma postura ambivalente, com condenações à invasão, mas também atribuições à Otan (aliança militar do Ocidente, liderada pelos EUA) de responsabilidade pelo conflito. Após a declaração à revista Time no início do ano passado de que Volodymyr Zelensky “é tão responsável” quanto Putin pela guerra, buscou ser mais cuidadoso com o discurso. 

Mesmo assim, por vezes parece medir pouco as palavras, e falas durante visita do chanceler alemão, Olaf Scholz, a Brasília na semana passada desataram repercussão doméstica negativa para o líder alemão.

Há uma compreensão por parte dos governos de que não vão convergir sobre todos os assuntos. Mesmo assim, um risco desta visita a Washington é que o presidente brasileiro de algum modo aparente ter afinidade com Putin, possivelmente motivando reação enfática de Biden. Se isso ocorrer, os planos de desenvolver uma colaboração proveitosa a partir da diplomacia presidencial, hoje compartilhados por ambas as partes, podem ser inibidos:

— O que mais pode atrapalhar é um desentendimento a respeito da questão da Ucrânia. É um tema hipersensível — disse ao GLOBO Matias Spektor, professor de Relações Internacionais da FGV/SP. — Se ficar a impressão em Washington de que Lula está apoiando tacitamente Putin, ou então fazendo um trabalho em benefício do presidente russo, a possibilidade de uma relação fluida irá por água abaixo. 

A prioridade absoluta de Lula deveria ser calibrar bem o que dirá em relação à Ucrânia.

Lula vai a Washington com cerca de 40 dias no cargo, o que mostra a prioridade concedida entre as partes para o encontro. Brasil e Estados Unidos vivem uma inédita semelhança entre seus cenários internos, com parcelas importantes de suas populações radicalizadas à direita sob a liderança de ex-presidentes de tendências antidemocráticas, o que se materializou nas tentativas golpistas de 6 janeiro de 2021 e 8 de janeiro deste ano. 

A prioridade à pauta ambiental e climática nas agendas dos governos também os une, e ano que vem Brasil e EUA celebram 200 anos de relações diplomáticas, marco potencialmente motivador de maior aproximação.

Oportunidades bilaterais

A viagem integra a campanha brasileira para reintroduzir o país no palco das relações internacionais globais após os anos de exclusão sob Jair Bolsonaro, e as oportunidades bilaterais para o Brasil são várias. 

No clima, Lula pretende cobrar contrapartidas dos países desenvolvidos em apoio à Amazônia. Durante a Conferência do Clima de Glasgow em 2021, Biden fez uma promessa de pedir ao Congresso a alocação de US$ 9 bilhões para a conservação de florestas globais, um compromisso que ainda não cumpriu.

O governo americano também busca construir uma aliança de democracias contra o autoritarismo, e a pressão que exerceu em defesa do Estado de Direito no ano passado, com mensagens de alerta sobretudo para as Forças Armadas, teve papel importante para tolher possíveis impulsos golpistas por parte do ex-presidente Jair Bolsonaro e de seus aliados. Além disso, Washington quer se contrapor à crescente influência chinesa na América do Sul e pode oferecer benesses como barganha.

Estas incluem potenciais vantagens em longo prazo: como aponta Felipe Loureiro, professor de Relações Internacionais da USP, em sua competição com a China, Washington busca deslocar parte de suas cadeias produtivas. 

Embora isto ainda se dê no âmbito da especulação e enfrente obstáculos — no momento, o próprio Biden adota medidas protecionistas para a sua indústria —, é concebível que os EUA eventualmente queiram transferir parte dessas cadeias para o Brasil:

— Do ponto de vista das relações comerciais e econômicas mais amplas, há hoje uma desigualdade que favorece os EUA. O Brasil é deficitário e importa muitos industrializados e produtos de alto valor agregado. Com o fim de reequilibrar mais as relações comerciais, poderíamos ver a inserção do Brasil em algumas cadeias americanas — afirmou Loureiro. — Mas isso é algo que leva muito mais tempo.

Lula, que chegou aos EUA na quinta-feira à tarde, passará pouco mais de 40 horas na capital americana, e parte de volta ao Brasil no sábado de manhã. O encontro com Biden está previsto para a tarde desta sexta-feira. 

Não há entrevista coletiva com os presidentes lado a lado marcada, mas ministros devem falar com a imprensa após o encontro, e Lula talvez participe.

A comitiva presidencial inclui o chanceler, Mauro Vieira, Fernando Haddad, da Fazenda, Marina Silva, do Meio Ambiente, Anielle Franco, da Igualdade Racial, o assessor especial Celso Amorim, e o secretário executivo do Ministério do Desenvolvimento Econômico e Comércio, Marcio Elias Rosa.

Em reuniões, todos devem buscar iniciativas de cooperação com funcionários do governo americano em suas respectivas áreas. Enquanto os presidentes se encontram, as primeiras-damas Janja e Jill Biden vão tomar chá juntas.

Uma dúvida é se haverá um comunicado conjunto contra atos golpistas e em defesa da democracia, como quer o governo brasileiro. 

O tema democrático é permeado ainda por outras pressões, como a diferença de tratamento em relação à China — enquanto o governo americano é ferrenho rival de Pequim, o governo brasileiro busca manter a tradição diplomática brasileira de boas relações e dialogar com todos, e Lula viajará a Pequim no mês que vem —, e a postura amistosa brasileira em relação a países com governo autoritários de esquerda latino-americanos como Venezuela e Cuba.

A esse respeito, há uma flexibilização na postura de Washington em relação a Caracas, que há cerca de um ano busca ter canais diplomáticos com Nicolás Maduro, o que é mais um ponto que ajuda a reunião. Mesmo a libertação de prisioneiros políticos pelo regime de Daniel Ortega nesta quinta-feira tem repercussões positivas para o encontro presidencial.

A múltipla sintonia faz com que Felipe Loureiro entenda que, embora haja chance de esfriamento da relação a partir de um escorregão em relação ao conflito na Ucrânia, ela não é muito significativa, por simplesmente haver muitas convergências. 

Washington já sabe que não há entendimento sobre esse assunto, e mesmo a postura oficial brasileira, como tem ocorrido em votações na ONU, é de condenação à invasão e à anexação territorial, em consonância com princípios básicos da diplomacia do país, como o respeito à integridade territorial e a defesa da solução pacífica de controvérsias.

Ao lado de Scholz na semana passada, no entanto, não foi a esses princípios que Lula fez referência, repetindo em vez disso o ditado popular de “quando um não quer, dois não brigam”. Na Alemanha, a despeito de uma doação de 200 milhões de euros para a Amazônia e energia limpa, isto gerou manchetes como “Lula dá banho de água fria em Scholz”, “Lula dá de ombros” e “O amigo difícil”.

Quando estiver em Washington nesta sexta-feira, o presidente brasileiro terá o desafio de caminhar em uma linha tênue para evitar o mesmo tipo de repercussão:

— Com Scholz, ao se referir à Ucrânia, Lula usou uma expressão que se fundamenta pela lógica do agressor. Depois, quando falou em grupo da paz, soou como um improviso, um despreparo ingênuo. Isto dá um um frio na barriga para a reunião com Biden — afirmou Bruna Santos, diretora do Brazil Institute no Wilson Center, em Washington. 

— Precisamos ver se ele optará por uma diplomacia mais tradicional, baseada na defesa da não agressão e na compreensão de não alinhamento em uma série de agendas, ou se vai usar um discurso que pode soar incoerente. Isso o deixa numa linha tênue, e pode descarregar e descambar para tensões.


Fonte: O GLOBO